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Me desfazendo das garras

Sentada no centro da sala de casa, cruzo as pernas. A lombar dói, os pés também, mas não sinto medo. Muito menos o impulso de voltar para o sofá ou me ajeitar na rede. Corto as unhas. Estavam afiadas, longas, queriam machucar. Mas agora me retiro, me desfaço. Deixo tudo inofensivo - as unhas curtas e as mãos são para escrever, apenas. Não preciso mais me proteger.

Como prometido por mim a mim mesma, este ano tratei de voltar às salas de aula. O doutorado parecia somente apontar para o que eu não sabia, me machucar. Pois sobrava espaço para aquilo que eu julgava ser o meu lugar: a escola. Às vezes eu me perdia, é claro, mas a sensação que eu tinha era de que eu sabia dar aula. Independente do quê, pra quem, onde, quando. Era trabalho, era cansativo, mas eu pensava: era o meu lugar. Pois bem: dessa vez não foi bem assim.

Cheguei numa escola muito carente. Os professores já se sentiam derrotados antes mesmo das aulas começarem - deitavam esparramados na mesa de reunião pedagógica. E os alunos chegaram - alunos muito diferentes dos que eu conheci e imaginei. Envoltos numa carapaça de violência. E assim fui tentando dar os meus jeitos, contornar, negociar, inventar uma dinâmica, levar uma caixa de bis. E aí fui perdendo o sono, o suor frio pré-aula encharcava o travesseiro. Perdi também o brilho no olho, a vontade de caprichar, de entregar. Toda aula não era um encontro: era um confronto. E nesse lugar eu não queria machucar ninguém - muito menos eu mesma. É óbvio que as coisas iam melhorar - especialmente se eu me esforçasse, se eu me esforçasse muito, se eu ficasse e insistisse. Ia ser difícil. Talvez fosse gratificante. Mas a minha vida sempre foi disso: eu me protejo, eu me defendo, eu me libero das coisas muito doloridas. Eu não permito que me façam feridas. Quando eu vi, já tinha me demitido. E talvez não tenha sido o mais certo. Mas foi o que consegui fazer: fugir para um outro lugar.

Ter a habilidade de se proteger é bom - na rua e na selva. Na escola, é diferente: o cargo de professora vem acoplado com a necessidade de se desvincular de comentários e ataques dos alunos - até porque eles não são sobre você. Talvez nem sejam sobre os alunos em si, mas sobre a adolescência, suas chatices e delícias. Às vezes para garantir o encontro você tenha que se vulnerabilizar - ou demonstrar que aquilo não dói. Mas eu sou poeta, sou sensível - e tudo dói.

Aí fui levantando paredes. Me deu uma vontade louca de me tatuar ainda mais: eu queria me fechar. Sentia algo meio bicho que quer mostrar sua força com garras, dentes, e novas manchas venenosas. Calei: nenhum aluno conseguiu vislumbrar qualquer resto de carisma que eu acredite que eu tenha. Deixei as unhas crescerem. O batom vermelho - antes pensado para que os alunos pudessem diferenciar sílabas, entender bem as palavras - agora era simples pintura de guerra.

Em outras escolas eu tive espaço para ser besta - e isso me salvou. Os alunos viam que eu não sabia tudo e eu achava isso ótimo: mostra que tudo pode ser aprendido. E mais: que há beleza na falta, no tosco, no mistério...

Mas às vezes a sala de aula é uma plateia - uma difícil de aguentar. E tem dias que a gente só quer ser forte, inteligente, feliz. Sem erros. E aí é impossível. Você pode criar o mecanismo de defesa que for, do veneno à arma. Do erro ninguém escapa. Do ego ninguém sai ileso. E aí eu voltava chorando pra casa, me sentindo vencida. Até me demitir.

Aí me desfiz das proteções que eu não precisava mais. Pude falar baixo novamente - me ouvir. Ver que sou falha mesmo: que até as tatuagens são meio tortas, independente se me protegeriam ou não. E ninguém vai morrer por isso - nem eu. Tirei a maquiagem, guardando o batom para outra ocasião. Recuperei o fôlego. E deitei, sem garras ou defesas, no chão da sala.

Olho direito para as unhas curtinhas: querendo me salvar, arranquei pedaços de pele. É, não dá: quem quer viver tem que primeiro se machucar. O bom é que tudo cicatriza, uma hora. E aí eu posso escrever sobre.

Deitada na sala, estou intacta - mas vazia de histórias e cicatrizes. Talvez o desafio desse ano seja aprender a me desproteger.


 
 
 

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Essa sua escrita é tão perfeita que mostra a transparência da sua alma!

Adoro demais!

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